Manisfesto sobre o Escola sem Partidos

Desde as eleições de 2002, a sociedade brasileira está passando por um processo de profunda transformação. As políticas adotadas pelo governo petista ‐ independente de sua real eficácia ‐ fizeram com que nos entendêssemos como sujeitos portadores de direitos. Cidadania deixou de ser estar a mercê de programas assistencialistas para termos direitos ‐ à moradia, à renda mínima, à políticas afirmativas, direito de acesso ao ensino superior ‐ consolidados. De lá pra cá, entendemos que os projetos assistencialistas tinham baixo impacto coletivo e eram mais eficientes em suavizar as contradições sociais do que em revertê‐las.




Contraditoriamente, um dos gatilhos das andarilhagens de julho de 2013 foi a incompetência do governo petista em garantir o real acesso aos direitos. Dos vários clamores das ruas, mesmo os mais clichês, bradávamos que o governo de Dilma Roussef não conseguia garantir direitos básicos, como transporte e educação de qualidade que havia prometido. Enfim, julho de 2013 mostrou que a sociedade brasileira ‐ mesmo de maneira confusa e desorganizada ‐ não se contenta mais com ações de efetividade duvidosa.

A transformação na nossa sociedade está gerando um processo de ruptura dos sujeitos portadores de direitos com aqueles que se consolidaram por privilégios e por constantes obstruções ao acesso a direitos e que se constituíram na nossa elite econômica e política. Essa oposição está gerando conflitos nos mais diversos palcos e arenas: na imprensa, nas eleições, no golpe, nas manifestações de rua e, agora, nas escolas.

O Movimento Escola Sem Partidos faz parte desses embates resultantes desse processo de transformação da sociedade brasileira. É um movimento que vem ganhando destaque na mídia e nas redes sociais principalmente depois que o ator e empresário Alexandre Frota foi recebido em uma audiência por Mendonça Filhos, ministro da educação do governo golpista. De acordo com o site do movimento (acessado em 28/07/16), o Escola Sem Partido foca na necessidade de refletir "com neutralidade e equilíbrio, os infinitos matizes da realidade." Além disso, o movimento alerta que nas escolas públicas e particulares, os alunos vêm sofrendo assédio de grupos pertencentes a uma corrente ideológica hegemônica. Ao apresentar seu projeto ao ministro, o ator Alexandre Frota expressou esse desejo por uma escola sem ideologia e sem doutrinação.

Tentarei, nesse texto, debater e posicionar‐me diante desse Movimento tecendo considerações. Existe escola sem ideologia? Que ideologia seria ensinada nas escolas? O que pretende o Escola Sem Partidos?

A questão da ideologia.

A ideologia permeia tudo o que vemos, sentimos ou fazemos. Em maior ou menor grau, tudo é ideológico. Um "bom dia" pode, em princípio, ter um componente ideológico pequeno, mas a maneira como um homem dá bom dia para uma mulher pode carregar um componente ideológico muito maior. A questão é mais complexa, mas o exemplo ilustra que tudo o que fazemos num maior ou menor grau é marcado ideologicamente.

A maneira como enxergamos uma ação, um texto ou um objeto também é ideológica. Obedecer ou não uma placa de proibido estacionar pode revelar o posicionamento ideológico de um indivíduo a cerca da coisa pública, da maneira como ele enxerga o trânsito e tal. Não há textos que não sejam marcados ideologicamente e não existe uma interpretação de um texto que não seja ideologicamente sustentada.

Ideologia, porém, não está ligada apenas à questão política-partidária. Aliás, talvez uma das críticas que se possa fazer é que a ideologia dos partidos políticos não dialoga inteiramente com as questões ideológicas presentes na sociedade. Ser ideológico não significa um posicionamento à esquerda ou à direita, mas sim um posicionamento obrigatório e inevitável diante de um fato, de um texto ou de um evento. Aliás, a própria definição de esquerda e direita mostra‐se insuficiente para abrigar a multiplicidade das ideologias que compõe a nossa sociedade.

Tudo, então, é marcado ideologicamente e nenhum posicionamento é neutro. O jornais ‐ televisivos ou escritos ‐ são grandes ícones da suposta neutralidade. pois alegam que adotam uma postura isenta e transmitem apenas a verdade dos fatos. Na verdade, o que os jornais fazem é adotar uma série de estratégias para construir um ar de isenção. Ar de isenção é diferente de isenção, que por sua vez não existe. A ciência também é um outro ícone no discurso da suposta neutralidade. A abordagem científica ou a análise científica é uma chancela de isenção. Quem acredita nesse selo, no entanto, ignora as disputas internas associadas ao fazer científico.

A questão das ideologias nas escolas

A escola, apesar de absorver o discurso científico‐positivista, não tem nada de neutro e tem muito de ideológico. Antes, no entanto, de discutirmos a ideologia nas escolas, temos que entender que a escola é uma estrutura complexa que não pode ser generalizada. Uma escola é composta por um corpo docente, que não é homogêneo. A formação de um professor de Português difere da formação de um professor de Matemática, que por sua vez difere da formação de um professor de Educação Física. Aliás, mesmo entre os professores da mesma disciplina há a mais variedade de formação acadêmica resultando as mais diversas posturas ideológicas.

Além do corpo docente, há os discentes. Um dos grandes erros que alguém pode cometer ao interpretar o funcionamento de uma escola é ver os alunos como uma massa homogênea. Assim como os professores, o grupo dos discentes é uma heterogêneo, composto por indivíduos de uma faixa etária abrangente, vindos de realidades socioeconômicas diferentes ‐ independente se a escola é particular ou não.

Outro grupo que forma a escola, apesar de muitas vezes esquecido, é o dos funcionários, sujeitos que desempenham desde funções administrativas, de manutenção e pedagógicas. Assim, como nos outros grupos citados, os funcionários possuem posicionamentos ideológicos distintos, resultantes de realidades diversas. E claro, como parte da escola, esse grupo é responsável direto pela formação dos educandos.

Além do tripé docente/discente/funcionário, uma escola não se limita às cercas do seu prédio. A escola também recebe uma influência muito grande da família dos alunos e dos órgãos estatais responsáveis pelas políticas educacionais.

Usar o termo escola, então, é vago e resulta em uma imprecisão metodológica inaceitável que não podem acontecer quando nos referimos a aspectos relacionados à Educação. Olhando o site do movimento Escola Sem Partidos (acessado em 28/07/2016), percebemos que a concepção de escola é generalista, imprecisa e, claro, ineficiente. Entretanto, uma leitura de entrelinhas no site, temos a impressão de que o movimento refere‐se à sala de aula. Assim, a discussão estabelecerá esse relação metonímica, falando de escola mas referindo‐se apenas à sala de aula.

Para entender como tudo é ideológico nas práticas de sala de aula, pensemos no processo de alfabetização. Durante muito tempo, ele resumia‐se a frases esteriotipadas como "Ivo viu a uva". Em princípio, alguém pode argumentar que esse é um bom exemplo de neutralidade em sala de aula, pois o único objetivo é ensinar ao aluno o uso da letra V. Mas não é bem assim. Qualquer educador ‐ por experiência empírica, teórica ou ambos ‐ entende que essa frase apenas ensina a existência da letra da V e não seu uso, já que é apenas uma frase e não um enunciado (o que não significa que não seja um enunciado possível). No final, ao usar uma frase como essa, o professor está apresentando de maneira formal a letra V, e não o seu uso. Diante de uma frase como essa, ciente das suas limitações, por que um professor a usaria? A escolha não é neutra, mas marcada ideologicamente, muitas vezes sem que o sujeito tenha consciência dessa marcação.

Se não há outra possibilidade senão um ensino ideológico, que tipo de ideologia está presente em sala de aula? Não conheço nenhum trabalho acadêmico que descreva numericamente que a ideologia presente em sala de aula é majoritariamente progressista ou conservadora. Entretanto, devemos lembrar que a sala de aula não está destacada da sociedade e alheia a ela. Infelizmente, devido à patente deficiência do sistema de ensino ‐ tanto particular como público ‐ a sala de aula, ao invés de refletir sobre a realidade que a cerca, ela reflete essa realidade. Se a sociedade brasileira hoje adota um perfil mais conservador, é provável que, se fizermos uma pesquisa mais rigorosa, perceberemos que a ideologia predominante é também conservadora.

A ausência de rigor científico faz com que tudo o que foi escrito por mim até agora seja amplamente questionável, afinal, são conclusões tiradas a partir de observações sem o menor rigor metodológico. Da mesma forma que minhas observações, então, são superficiais, as observações do Movimento Escola Sem Partido são superficiais, pois eles não apresentam nenhum dado concreto para que se chegue à afirmação de que há doutrinação nas escolas.

O que quer o Movimento Escola Sem Partido

Muitas vezes, há palavras que nos parecem tão fortes que acreditamos que elas bastam por si só, dispensando um contexto mais apurado. Democracia é o grande exemplo. Somos muitas vezes impelidos a lutar pela democracia, sem no entanto definirmos o seu conceito e filiando-nos a pessoas que a definem de outra maneira. Então, é necessário que estejamos conscientes das implicações semânticas, discursivas e pragmáticas dos significantes que representam nossa luta. O mesmo acontece com o termo "sem partido". Olhando para o contexto, o termo "sem partido", implicitamente quer dizer: "sem partidos de esquerda", independente do que significa um partido de esquerda.

Nessa direção, uma escola sem ideologia significa uma escola sem ideologia de esquerda e um escola sem doutrinação é uma escola doutrinação de esquerda. Enfim, o movimento Escola Sem Partido nada mais do que um projeto político estendido para a sala de aula. Ou seja, o movimento faz justamente aquilo que ele alega ser contra.

Sem nenhuma proposta pedagógica realmente convincente, o movimento Escola Sem Partido nada mais do que uma reação conservadora de grupos contra os avanços, mesmo que pequenos, mas significativos da sociedade brasileira. Ao invés de propormos uma escola sem partido, devemos propor uma escola com todos os partidos. Ainda mais, devemos propor que os partidos políticos ouçam as necessidades das escolas. Ao invés de ensino sem ideologia, devemos propor um ensino em que todas as ideologias estejam à mesa para que possam ser confrontadas e desmistificadas. Enfim, uma escola plural e dialógica.

Sobre o projeto "Escola Sem Partidos", acesse: PROJETO DE LEI DO SENADO nº 193, de 2016

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