sobre o autor e nós

Desde que o produtor Harvey Weinstein foi denunciado por múltiplos assédios sexuais, a indústria cinematográfica hollywoodiana vive em estado convulcionante. Em declarações a jornais, em hashtags (#metoo), e em protestos no Globo de Ouro, as atrizes escancararam as agressões, apoiaram  as vítimas e as empoderaram . A violência contra a mulher deixou de ser anedótica ou parte do imaginário sobre os bastidores das relações entre as atrizes e o cinema americano e passou a ser mais uma trincheira na luta das mulheres por dignidade, direitos e segurança.

O tiro acertou o alvo, Weinstein foi demitido; mas ricocheteou em Woody Allen. Se a ironia, o humor, a fotografia, o ambiente novaiorquino e o jazz marcam a obra do autor, o amor e o ódio marcam sua figura pública. Muitos o amam pela seu porte franzino, frágil e desajeitado, seus óculos e suas neuroses clichês; mas outros o odeiam (e o repugnam) pelo relacionamento com a filha adotiva de sua ex-mulher e, agora, pela denuncia de assédio sexual da sua também filha adotiva, Dylan Farrow. Porém, enquanto Weinstein uniu, Allen dividiu: atrizes como Diane Keaton e Kate Winslet o defendem. Por sua vez,  atrizes como Ellen Pagen, Rebeca Hall o atacam e o criticam. Já Selena Gomes parece sofrer no meio do fogo cruzado.



Woody Allen
O caso de Woody Allen remete imediatamente ao caso de Roman Polanski. O diretor polonês é foragido da justiça americana desde 1978, quando foi condenado por abuso sexual de uma menina de 13 anos em uma festa organizada pelo ator Jack Nicholson. Aos olhos do público, tanto Woody Allen como Polanski parecem não ter pago pelos crimes; pois, enquanto um não está sendo alvo de nenhuma investigação, o outro ainda vive solto (embora proibido de entrar nos EUA). Na aparente ausência de justiça, o público parece ter montado seu próprio tribunal e ter dado a própria sentença: o artista pagará a pena.

O público, geralmente, constrói uma trindade na relação pessoa física/autor/obra. A pessoa física confunde-se com o autor e a obra confunde-se com a vida ou o psicológico da pessoa física. Nesse emaranhado do sublime da obra com a vida da pessoa física, o público acaba elevando a pessoa que escreveu a obra ao status de herói. Porém, quando a pessoa física comete um ato moralmente ou eticamente condenável, não só a pessoa física é destituída da condição de ídolo, como a obra é rebaixada e, de sublime, passa a ser vulgar. Já que, no final, o púbico não tem o poder de condenar a pessoa física, o público acaba condenando o autor e a obra com o boicote. Pune-se a obra, pune-se o autor, mas a pessoa física escapa ilesa.

Para que a justiça seja feita (se é que muitas vezes o desejo é de justiça ou linchamento) é preciso romper com essa trindade. Bakhtin, em o Autor e e a Personagem [Estética da Criação Verbal, Martins Fontes], afirma que o autor só existe dentro do universo da obra, dando às personagens acabamento e, às narrativas, unidade. Acabamento, para Bakhtin, é maneira como o eu completa-se a partir do excedente de visão do outroNa teoria bakhtiniana, o outro consegue enxergar em mim elementos que eu não tenho acesso e, ao tornar-me sensível à essa visão, eu consigo entender-me de forma mais plena. No contato entre duas pessoas 'físicas' (ou, seja, que não estejam na obra de arte), dizer que esse 'outro' tem uma visão excedente sobre mim não significa que ela sabe de todas minhas características. Ao contrário, o acabamento que vem do outro é apenas relacionado a um aspecto da minha vida. No final, é nesse aspecto em que Bakhtin diferencia o autor de uma pessoa física. Enquanto de uma pessoa física para outra o acabamento é dado em apenas alguns aspectos, o autor é aquele quem consegue dar à personagem uma totalidade, ou seja, a personagem constitui-se a partir do acabamento total dado pelo autor, pois é ele quem tem acesso a todos os elementos constituintes da personagem.

Em uma narrativa, as personagens tocam-se o tempo todo. Há contatos que são fugazes, da mesma maneira que há contatos que são mais determinantes para as personagens. A maneira como as personagens se tocam e a maneira como ocorre o cruzamento das narrativas é determinada pelo autor, que nos fará enxergar essas narrativas em forma de um romance ou de qualquer outro gênero. Em outras palavras, é o narrador quem organiza e dá formato à maneira como absorvemos o conteúdo estético de uma obra. A questão do autor, colocada da forma como foi até agora, tem-se a impressão que não passa de um elemento estruturante apenas. Entretanto, a maneira como o autor manipula os elementos linguísticos na obra faz nascer o estilo, particular e único. A medida em que vamos reconhecendo o mesmo estilo nas mais diversas narrativas, mas reconhecendo também marcas concretas de autoria. Assim, como podemos perceber, o autor acontece na obra de arte e não fora dela.

Fora da obra de arte, para a teoria bakhtiniana, há apenas a pessoa física. A pessoa física, o sujeito que escreve não participa do mundo da obra de arte, pois ele apenas está inserido no nosso mundo real. A pessoa física é aquela que compartilha conosco do mesmo momento histórico e está sujeita às mesmas regras éticas, morais e sociais, ou seja, uma pessoa igual a nós. Buscar na pessoa física informações sobre a obra de arte  é entender que as únicas informações que serão obtidas são sobre o processo de escrita e não sobre as significações do texto. Para Bakhtin, a busca por informações sobre o autor só é relevante para aqueles que querem escrever uma biografia sobre o autor ou, então, moralizar a obra.

A questão da moralização da obra de arte é um aspecto central aqui. Não separar a pessoa física Polanski/Woody Allen dos autores Polanski/Woody Allen é correr o risco de reduzir a experiência estética na apreciação de suas obras; pois, no final das contas, vemos apenas o que é biografia e acabamos não dando espaço para a obra mostrar a sua grande riqueza, o diálogo com outras obras de arte. Corre-se, ainda por cima, o risco de impor às obras de arte os valores morais da nossa sociedade. Ora, a obra não deve estar submissa às regras morais; mas, ao contrário, deve tensioná-las e questioná-las. As normas éticas não devem ser aplicadas na obra estética.

A luta por igualdades é complexa e de muitas frentes e a via do campo simbólico é uma delas. Como tenho pontuado ao longo do texto, devemos ser bastante criteriosos. A liberdade que damos para a obra, para o autor, não é a liberdade que damos para a pessoa física. Ao contrário da obra, a pessoa física, o sujeito escrevente está sujeito às normas éticas e legais do nosso mundo e deve ser questionado caso as descumpra. Woody Allen e Polanski devem punidos na medida exata de seus crimes e o empoderamento das vítimas e sensibilização da sociedade são caminho.

4 comentários:

  1. Interesante tema, Breno. É muito comum ouvirmos comentários em que se misturam pessoa/autor/narrativa/personagem/ator. Importante a gente trabalhar esses aspectos em nossas aulas,para formar leitores e espectadores abertos à fruição e à reflexão que a obra possa suscitar.

    ResponderExcluir
  2. É interessante como a literatura infantil é (con)fundida com a obra catequética. Ao invés de se ligar à estética da literatura e entendê-la como campo de tensões, ela é ligada a uma função catequética e pedagógica, na ilusão de com isso apagar tensões que potencialmente dispararam uma educação moral afeita a este out àquele senso comum vigente. Retomando uma de suas colocações, Breno, no caso da literatura infantil, o comum é ver que as normas éticas devem ser aplicadas na obra estética. E com isso vai se investindo na formação de um leitor míope para a literatura.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Isso que você está falando é interessante, Luciana! Partindo do princípio de que a maioria é alfabetizada com a ajuda da literatura infantil, por quê há tão poucos leitores de romances? Será que não seria por essa moralização da obra de arte?

      Excluir