como corrigir uma redação e, ao mesmo tempo, fazer um miojo

O ENEM é uma prova muito diferente da FUVEST, VUNESP ou COMVEST. As provas da FUVEST e da VUNESP são simples, sem nenhuma intenção de manter um diálogo com o ensino. Pode-se dizer que são provas alheias ao processo educacional que estão envolvidas e têm como propósito apenas de selecionar alunos para as respectivas faculdades. A COMVEST, apesar de também servir apenas para selecionar alunos para a UNICAMP, tenta dialogar mais com o ensino nas escolas, organizando um vestibular preocupado com a relação que os alunos estabelecem com os conhecimentos científicos estudados durante o período escolar. Das universidades paulistas, o vestibular da UNICAMP é o único que oferece cursos e que estabelece diálogos com os professores.


O perfil dos candidatos é também diferente. Na UNICAMP, por exemplo, 95% dos candidatos são de São Paulo (http://goo.gl/0DP0s), enquanto no Enem há candidatos de todos os lugares do Brasil (http://goo.gl/EE9IM). Além disso, a prova do MEC tem outras funções além de ser um vestibular: para o aluno, é a porta de entrada o ProUni e é também o certificado de conclusão do Ensino Médio; para o governo, é utilizado para avaliar a qualidade de ensino.

Considerando as características do ENEM, a correção da prova e, especialmente, da redação segue critérios diferentes dos outros vestibulares. Se um candidato tem a sua redação zerada em um vestibular qualquer, ele representa apenas um concorrente a menos; no ENEM, por sua vez, significa um corrente a menos, um aluno a menos no ProUni (reduzindo seu impacto democratizador do acesso ao ensino superior) e, principalmente, uma maneira de dizer ao aluno que ele não é capaz de escrever NADA depois de três anos no ensino médio. Assim, uma nota atribuída a um candidato no ENEM tem um peso muito maior do que uma nota atribuída a um candidato de qualquer outro vestibular.

A prova do Enem sempre esteve sob vigília da imprensa, principalmente depois dos problemas na aplicação das provas de 2009, 2010 e 2011. Sobre a prova de 2012, a polêmica está na maneira como algumas redações foram corrigidas. Saiu na imprensa que um aluno inseriu propositalmente na redação uma receita de miojo e acabou recebendo nota 550. Seria interessante entender porque essa nota foi atribuída e como ela mostra o processo de correção. De agora em diante, por não fazer da equipe de correção, especularei sobre o que aconteceu. Muitas das análises e críticas que são feitas em relação à prova têm viés partidário, entretanto, tentarei, o máximo possível desenviesá-las
Em primeiro lugar, não acredito em erro por parte dos corretores. Apesar de discordar de muitos dos conceitos em que o Enem é baseado, é uma prova séria. Além do mais, toda redação é passada por, no mínimo, dois corretores. Uma redação como essa, devido à sua estrutura e conteúdo, deve ter gerado divergências na nota e deve ter sido corrigida por mais de dois corretores. Assim, mais uma vez, ao invés de criticar o ENEM, esse fato pode nos revelar muito sobre seu processo de correção.

Devemos deixar bem claro que o texto só faz essa brincadeira no terceiro parágrafo, mas nos outros ele discute o assunto que foi proposto. Além do mais, ele obedece o esquema clássico de paragrafação das redações de vestibular: há um parágrafo introdutório com a descrição do problema, um parágrafo intermediário argumentativo e outro conclusivo. Em relação à construção de parágrafos - elemento chave para a coesão - o texto é bem estruturado. Com excessão do parágrafo do miojo, os únicos erros do candidato foram não colocar uma tese no primeiro parágrafo e não colocar uma proposta de intervenção no último. São erros que descontam muito pontos, mas não são erros que impedem o corretor de agregar pontos à redação.
Como relação à construção do gênero textual (sempre lembrando: eliminado o parágrafo do miojo), o aluno mostrou-se instável: a maior parte do texto contem uma descrição do problema. A tese de que o governo já está fazendo algo em pról da imigração é muito simples e frágil, contribuindo para a fragilidade da estrutura argumentativa. Além disso, o texto possui em algns momentos uma estrutura sintática fraca, muito similar à oralidade, como em "uma boa solução para o problema o governo está fazendo" baseado na constução tópico (uma boa solução para o problema) + comentário (o governo está fazendo). Esse tipo de construção lança uma dúvida: suponhamos (sempre no campo da suposição, sempre) que o aluno pretendesse fazer uma redação normal, será que ele seria capaz de organizar um bom texto que valha, por exemplo, acima de 800?
Com relação à abordagem do tema, é importante perceber que ela está presente em 3/4 do texto. O aluno fala sobre a imigração de uma maneria séria (pouco profunda, é verdadde), mas coerente em relação a maneira como o problema foi abordado pela proposta. Além do mais, o aluno não fez nenhuma declaração que desviasse dos direitos humanos, esse sim um critério eliminador. 

O que estamos percebendo até agora é que não temos um texto errado, um texto indigno de nota. O que percebemos é que o texto mostra um sujeito com um conhecimento linguístico sofisticado, muito além da média nacional. Percebemos também que não há desvios de Norma Culta e, muito menos, erros ortográficos graves, que mostrassem que o sujeito não domina as regras da língua escrita. O texto mostra um sujeito fluente no próprio idioma, que é uma das preocupações de qualquer professor de português, principalmente, do MEC.

Assim, temos que pensar o seguinte: se fosse uma redação da FUVEST, o texto não receberia nenhuma nota, seria zerado por fuga do tema. A FUVEST estaria correta em zerar o texto pois, como já foi dito, ele é apenas classificatório. No ENEM, o texto, além de classificatório, serve como porta de entrada para o ProUni, certificado para o Ensino Médio e dados para o governo. É uma correção, como já dita, muito mais complexa. A pergunta que poderia ser feita é: mas não é óbvio que o aluno se propôs a confundir, anular a correção da prova? Talvez neste caso, mas em outros? Supomos que um aluno construa uma redação como essa e, ao invés de falar sobre miojos, fale mal do capitalismo. Apesar de ordem diferentes, são desvios sérios, que comprometem a coesão do texto, mas o suficiente para anulá-lo e, devemos sempre lembrar, a correção de uma redação - que é aplicada em todo o território nacional, para o público mais heterogêneo entre todos os vestibulares - deve ser coesa, com os mesmos critérios valendo para todos.

A correção feita pelo Enem está correta, é lógica, faz sentido. Se a prova do Enem faz sentido, é uma outra discussão.

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