meio irônico

A Clarah Averbuck 

(http://claraaverbuck.com.br/)é uma escritora que deixou de sê-la. Aparentemente, acho. Deixei de acompanhá-la quando ela resolveu dedicar-se aos reallity shows e a uma banda de rock. Entretanto, ela escreveu um livro que merece ser lido, relido e respeitado, o Máquina de Pinball. Nele, há uma passagem interessante:

(...) Não sei como está no cardápio, mas vou chamar de Paulista. Me encosto no balcão e quando a chego à triste conclusão de que meu primeiro salário já era, ouço um comentário nas minhas costas.

- Dizem que eles vão ser a próxima grande banda. 
Eu estava com uma camiseta do Strokes e tinha esse papo de salvação do rock pra cima deles. O rock não tem que ser salvo, o rock é um perdido na vida, um bêbado, um drogado, de barba malfeita e camisa aberta. Quem tenta salvar o rock o transforma em outra coisa. Strokes, Strokes é rock. E o rock não precisa ser salvo de nada. 
Levantei a sobrancelha direita. Sempre levanto a sobrancelha direita quando sinto algum tipo de desprezo. Era só o que me faltava: ressaca, falta de dinhero, não tem a porra do meu cigarro pra vender aqui e ainda tenho que ouvir isso. Cantada barata. Liguei o botão da ironia.
- Não. Só estou com essa camiseta para pesquisar quantas pessoas vão tentar essa cantada. Varia entre: "Você acha os Strokes tudo isso mesmo?", "Eu também adoro Strokes" e essa sua. 
- Pô, Ironia a essa hora?
- Que nem pizza e sexo, meu amigo. Ironia é bom até quando é ruim
Dizem que uso da ironia é sinal de inteligência da parte de quem produz e de quem ouve. Muitos tratam-na como se fosse um momento orgasmático (ou pré) no uso da linguagem e que muitas vezes está associada também ao humor. Na semana passada, um texto do escritor Antonio Prata para a Folha de São Paulo (http://goo.gl/aiZahg) reacendeu o debate sobre o uso da ironia.
Aliás, o Antonio Prata define-se como meio intelectual, meio de esquerda (http://goo.gl/2quKNV) e é filho escritor Mário Prata. O Prata pai é autor de um livro que eu gosto muito, o "Meus Homens e Minhas Mulheres" já, o filho, eu não o conheço tanto assim, a não ser pela crônica já citada. Bom, sobre a crônica, aconteceu o seguinte:

O autor começou o texto dizendo que, ao se classificar como esquerdista há um tempo atrás, era o que se esperava de alguém da idade. Para justificar tal argumento, o autor usou uma frase atribuída à Winston Churchill: "Um homem que não seja socialista aos 20 anos não tem coração; um homem que permaneça socialista aos 40 não tem cabeça." A frase significa que a juventude é o ,momento para sentimentos não-maduros, quase infantis, como as paixões incosequentes, as rebeldias vãs e o socioalismto. Maduro, no entanto, o sujeito deve abandonar tais sonhos, pois entende que os relacionamentos como o casamento não são baseados na paixão, mas algo mais racional e duradouro; as rebeldias mostram-se nada mais nada menos como uma incapacidade de adaptação ao mundo tal qual ele está posto e o socialismo como uma ideia distante, uma utopia inatingível. Tudo isso para dizer que, na idade em que ele se encontra agora, nada mais normal e racional que uma guinada à direita, uma volta para os sentimetos racionais.

Em seguida, o autor faz ataques a três pontos sensíveis: 1) o governo de esquerda e seu suposto aparelhamento; 2) a ascensão social dos negros devido às cotas racias; 3) a decadência moral provocada pelas minorias (gays, gordos, feios); 4) os ataques provocados por humoristas contra a mesma minoria. Ao terminar o texto, o autor desculpa-se com os velhos leitores dizendo que o grupo que ele defendia atingamente nada mais é do que os responsáveis por tudo que há de ruim na Terra e diz ainda: Me aguardem.

O "me aguardem" é muito sugestivo. O que vem em seguida? O que há para ser dito que não coube na crônica? Alguns leitores tentaram advinhar. O primeiro comentário já parece ter sido bem sucedido, pois disse que a onça havia sido cutucada com vara curta, mas quem seria(m) a(s) onça(s): os esquerdistas traídos ou os direitistas encapulados com o novo reforço. Um outro comentarista o  parabenizou por mudar de lado, dizendo que não se arrependerá (a pergunta é: o que deveria causar arrependimento?). Entretanto, esse mesmo leitor é repreendido por outros, que avisam que o texto tem o significado oposto do entendido pelo leitor. O terceiro comentarista já entendeu o recado: o texto era calcado na ironia.

Ao ganhar o mundo, a questão que permaneceu foi: era possível reconhecer a ironia no texto? Em que aspectos a ironia se manifestava? Em primeiro lugar, a ironia não é clara em texto algum. Para que ela se realize, deve haver um acordo em entre os interlocutores: o interlocutor 1, ao produzir uma ironia, compromete-se em sinalizá-la; o interlocutor 2, por sua vez, compromete-se em ir além da materialidade linguística e entenderá que, além do dito, há o não dito.
Há uma frase atribuída à Groucho Marx que diz
Estes são os meus princípios. Se não lhes agrada, tenho outros.
Imaginemos, no entanto, o mesmo enunciado em um outro interlocutor. Digo isso porque uma frase dita por Groucho Marx já cria uma expectativa (falarei sobre essa expectativa depois) de que a frase será irônica. Imaginemos, por exemplo, em uma situação cotidiana de interlocução. Enquanto se diz [estes são meus princípios], a ironia é impossível de ser detectada. A outra parte do enunciado, entretanto, abre possibilidades, pois ela se organiza em uma relação de causa-consequência. Em [se não lhe agrada], a causa está estabelecida e é na consequência, construída por uma surpresa, que a ironia se estabelece: [tenho outros].

Quando o mecanismo que indica a ironia está em jogo (o deslocamente em: "tenho outros"), exige-se do outro interlocutor uma certa agilidade discursiva para que ele entenda que "princípios", por definição, não estão em negociação. Assim, quando alguém diz que possui um princípio e que ele pode ser trocado por outro de acordo com a situação, o interlocutor 2 deve obrigatoriamente entender que o sujeito em questão não tem princípio ou caráter algum.

A pergunta é: porque o interlocutor 1 não diz simplesmente que não tem caráter, que não tem princípios? Devemos levar em consideração que ninguém pode assumir uma significação como essa impunemente, sem sofrer retaliações. A posse de princípios é um valor na sociedade e quando alguém não os possui, não pode assumí-los diretamente sem sofrer algum tipo de retaliação. É quando a ironia se faz necessária: ao significar o inverso, desculpabilizamos ou aliviamos a culpa sobre o interlocutor. Entretatno, ao perceber a ironia, o interlocutor 2 também alivia sobre si o peso de aceitar alguém que possua princípios.
Assim, podemos atribuir a ironia:
  1. Não restringe-se à materialidade linguística;
  2. Necessita de um mecanismo de indicação;
  3. Articula discursos diferentes;
  4. Depende de um acordo entre os interlocutores.
No texto do Antonio Prata, podemos analisá-lo da seguinte forma:
No primeiro parágrafo, é muito difícil encontrar a ironia, principalmente porque o autor usa uma citação de Churchill (um dos mais importantes líderes políticos de nosso tempo) para justificar a mudança na sua postura, a guinada na sua ideologia.

Já no segundo parágrafo, o mecanismo que sinaliza a construção da ironia começa a ser construído. No enunciado, "Quando terroristas, gays, índios, quilombolas, vândalos, maconheiros e aborteiros tentam levar a nação para o abismo, ou os cidadãos de bem se unem, como na saudosa Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que nos salvou do comunismo e nos garantiu 20 anos de paz, ou nos preparemos para a barbárie.". No enunciado, o autor associa exageradamente "gays", "índios" e "quilombolas" com "comunismo" e "abismo". Ora, não há associação possível entre esses elementos, pois mesmo em países que viveram ou que vivem uma experiência comunista, estas comunidades estão longe de viver em paz. É na associação exagerada, então, que a ironia começa a ser sinalizada.
Além desse momento, o exagero é encontrado nos seguintes enunciados: "Negros ricos e despreparados caçoando da meritocracia que reinava por estes costados desde a chegada de Cabral."; "Contra o poder desmesurado dado a negros, índios, gays e mulheres (as feias, inclusive), sem falar nos ex-pobres, que agora possuem dinheiro para avacalhar, com sua ignorância, a cultura reconhecidamente letrada de nossas elites".

O exagero, além de permitir a indicação da ironia, permite também a articulação de discursos que não seriam verbalizados em outras situações, como os discursos agressivos contra negros, homossexuais e a ascensão das mulheres. É nesse exagero que o texto se constitui definitavemente como irônico, frustrando a expectativa de quem estava a espera de uma conversão e que alivia os que temiam a possibilidade de um desiludido.

A questão que se ficou depois do texto publicado era: os leitores foram capazes de entender a ironia. Talvez as expectativas dos leitores sobre o texto ficaram acima de seu próprio significado.

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