inexorável

Tenho que cá para mim que a função de um vestibular pode ser muito mais do que um processo seletivo. A influência dessa prova na vida dos estudantes é imensa. Desde o primeiro ano do Ensino Médio até o último dia do terceiro, a preocupação com o vestibular é contínua, ininterrupta e intensa.


(Evidente que não me refiro às escolas onde a possibilidade do vestibular não chegam, às escolas em que os alunos são excluídos da universidade pública antes mesmo do vestibular, às escolas em que o abandono por falta de recursos materiais e humanos limitam, delimitam e encarceram as possibilidades dos alunos)

No Ensino Médio - ou em toda a vida escolar, aliás - espera-se que o aluno entenda a funcionamento da língua em todos os seus aspectos enunciativos, discursivos e pragmáticos. Assim, tão importante quanto conhecer uma oração subordinada é conhecer sua aplicação dentro dos gêneros textuais, os efeitos de sentido que ela acarreta e as relações semânticas implicadas. Em um resumo mais do óbvio, a linguagem deve ser estudada na escola tal qual ela acontece na vida.

Há uma questão de Enem 2013 que é muito interessante:
QUESTÃO 105

Art. 2° Considera-se criança, para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade. [...]
Art. 3° A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se--lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Art. 4° É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. [...]
BRASIL Lei n. 8069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da criança e do adolescente. Disponível em: www.plana lto.gobr (fragmento).

Para cumprir sua função social, o Estatuto da criança e do adolescente apresenta características próprias desse gênero quanto ao uso da língua e quanto à composição textual. Entre essas características, destaca-se emprego de
a) repetição vocabular para facilitar o entendimento.
b) palavras e construções que evitem ambiguidade.
c) expressões informais para apresentar os direitos.
d) frases na ordem direta para apresentar as informações mais relevantes.
e) exemplificações que auxiliem a compreensão dos conceitos formulados.
Essa questão de Enem olha para o léxico como um elemento constitutivo e caracterizante do gênero. Ao descrevê-lo como um texto que contém "palavras e construções que evitem ambiguidade", foco vai, por exemplo, na palavra "criança" e "adolescente". Como é um texto que define quais são os direitos da criança e adolescente, há, antes de tudo, a necessidade da definição do significa ser um e outro.

Entendemos, então, que preferência de "criança" no lugar de "moleque", por exemplo, para que não fosse associado a este termo nenhum sentido pejorativo. Entendemos que "adolescente" é diferente de "jovem", já que um adulto pode ser jovem.

Em como questão como a do Enem, percebemos como que as palavras "crianças" e "adolescente" não são escolhas aleatória, mas adequadas às exigências do gênero. O professor, inspirado pela prova, percebe que não deve cobrar de seus alunos apenas o conhecimento lexical, mas também todos as relações inerentes a este componente lexical.

Entretanto, a Fuvest muitas vezes vai na contramão dessa perspectiva, reduzindo o que significa fazer uma análise textual. Eis a questão
QUESTÃO 77
A civilização “pós-moderna” culminou em um progresso inegável, que não foi percebido antecipadamente, em sua inteireza. Ao mesmo tempo, sob o “mau uso” da ciência, da tecnologia e da capacidade de invenção nos precipitou na miséria moral inexorável. Os que condenam a ciência, a tecnologia e a invenção criativa por essa miséria ignoram os desafios que explodiram com o capitalismo monopolista de sua terceira fase.Em páginas secas premonitórias, E. Mandel* apontara tais riscos. O “livre jogo do mercado” (que não é e nunca foi “livre”) rasgou o ventre das vítimas: milhões de seres humanos nos países ricos e uma carrada maior de milhões nos países pobres. O centro acabou fabricando a sua periferia intrínseca e apossou-se, como não sucedeu nem sob o regime colonial direto, das outras periferias externas, que abrangem quase todo o “resto do mundo”. Florestan Fernandes, Folha de S.Paulo,27/12/1993
(*)Ernest Ezra Mandel (1923-1995): economista e militante político belga
No trecho “nos precipitou na miséria moral inexorável” (L.4-5), a palavra sublinhada pode ser substituída, sem prejuízo para o sentido do texto,por
a) inelutável.
b) inexequível.
c) inolvidável.
d) inominável.
e) impensável.
 Na questão proposta pela Fuvest, nos perguntamos qual é a concepção de língua proposta pela prova? O que significa usar "inelutável" no lugar de "inexorável"? Como "inexorável" ajuda na constituição do gênero? Além de eliminatória, qual a função desta questão?

Se quisesse cobrar conhecimento vocabular, talvez a melhor possibilidade fosse comparar o sentido de "inexorável" no texto em questão e em outros textos sobre política. Ou, ainda, como o gênero é afetado pela troca de "inexorável" por "inelutável".

O recado que a Fuvest passa por essa questão é que a concepção de língua que deve permear as atividades de sala de aula é uma língua estática, desprovida de historicidade, ideologia e subjetividade. É como se fosse decorar um dicionário.

Um comentário:

  1. Tantos anos de leituras diversas e pela primeira vez vejo a palavra inelutável! (todas as demais eu conheço...)

    ResponderExcluir